Os metais preciosos em geral (e neste texto eu uso o ouro como metonímia) têm sido aceitos como meio de troca pela humanidade há milhares de anos.
O homem da Antiguidade aceitava a ideia de armazenar ouro porque sabia que poderia trocar tal ouro por, por exemplo, comida. E isto porque certamente o outro homem aceitaria trocar o tempo de vida que gastou caçando, coletando ou plantando para produzir comida por ouro. Este por sua vez aceitava trocar seu tempo gasto produzindo alimento por ouro justamente porque sabia que um terceiro também aceitaria dar outras coisas em troca de ouro, e assim por diante. É uma cadeia de confiança, inicialmente não-escrita, orgânica, e que eventualmente acabou resultando nas moedas de curso forçado que temos atualmente.
O ouro, assim como qualquer forma de dinheiro, seja físico seja digital, com lastro ou sem lastro, é no fundo uma abstração para o tempo. O dinheiro desde sempre funciona como uma "bateria de tempo", um jeito de armazená-lo: permite que você se especialize em fazer uma só coisa (ou poucas coisas) em troca destas "baterias", para que não precise gastar tempo fazendo atividades que outras pessoas se dispuseram a realizar, elas também gastando seu tempo de vida em troca de "baterias". E, como escrevi anteriormente, isto só funciona na base da confiança. Se em dado momento a confiança em determinada "bateria" acabar, todas as suas cópias se tornam praticamente inúteis.
E nós passamos por várias camadas de abstração para chegarmos onde estamos hoje em relação ao que entendemos como dinheiro.
O resumo deste caminho seria mais ou menos assim:
1) No início não existia dinheiro, não havia maneira simples e padronizada de "armazenar" tempo, então todos apenas satisfaziam suas necessidades imediatas e as da tribo, e no máximo estocavam coisas não perecíveis (peles, ossos, ferramentas, cerâmicas, etc.) mas sem pensar muito em trocas - estocavam principalmente porque era necessário para sobreviver (ao inverno, à seca, etc.) ;
2) Eventualmente chegou-se a um acordo não-escrito em que determinados objetos poderiam ser trocados por alimentos, água e por outros objetos (escambo);
3) Chegou-se a uma "conclusão coletiva" de que seria mais fácil e prático usar pedaços de ouro para fazer trocas, e novamente chegou-se a um acordo não-escrito de que isto seria aceito - esta foi a meu ver primeira camada de abstração, pois foi adotado como meio de troca algo que não tem utilidade imediata em termos de sobrevivência - o ouro. Aceitou-se armazenar esforço e tempo de vida em pedaços de metal;
4) Com o surgimento de Estados (nada mais que a consolidação do domínio das "tribos" mais fortes), ao invés de meros pedaços de ouro passa-se a cunhar moedas (para padronizar o peso e tamanho de cada pedaço de ouro) e o soberano de cada Estado garante que a moeda de ouro é realmente de ouro e tem aquele peso determinado (por isso que as moedas têm os rostos dos governantes e os símbolos do governo) - e cada soberano também força o curso de sua moeda em seus domínios, bem como detém o monopólio de cunhagem da moeda (ou vende tais direitos para um aliado) - chegamos a mais um grau de abstração, pois para que valesse a pena cunhar moedas de ouro, o valor de cada moeda deveria ser superior ao valor do ouro nela contido - havia em cada moeda um valor imaginário: a diferença entre o valor extrínseco e o intrínseco;
5) Um belo dia, percebeu-se que seria mais prático carregar recibos e comprovantes de depósitos de ouro em bancos do que carregar sacos de moedas, e com isto surgiu o papel-moeda. Nesta época era indiferente usar o recibo ou a moeda de ouro, e qualquer um que entregasse um recibo em um banco receberia o ouro em troca, e vice-versa: o dinheiro ainda tinha lastro. Outro grau de abstração foi alcançado: não apenas a moeda vale mais do que o ouro nela contido, o papel que diz que eu possuo determinada quantidade de moedas de ouro guardadas num cofre dentro de um estabelecimento bancário vale tanto quanto as tais moedas. Ou seja, aceitou-se armazenar tempo de vida e esforço em pedaços de papel timbrados, pois tais papéis poderiam ser trocados por ouro.
6) Eventualmente, por decisão unilateral estatal (ao menos nos casos em que conheço), abandona-se o lastro do dinheiro: o papel-moeda deixa de ser conversível em ouro. Por um tempo, esse dinheiro de papel convive com moedas de ouro, mas eventualmente isso terminou e todos passaram a usar só os papéis. Isto foi mais um grau de abstração alcançado: aceitou-se armazenar tempo em pedaços de papel timbrados pois o governo garante que tais papéis serão aceitos como meio de troca. O governo consegue forçar o uso do papel através da força da lei, mas não consegue controlar completamente o valor de tais papéis, os quais dependem da confiança que os usuários depositam neles, e é por isso que a isto se chama "moeda fiduciária". Se a população perde a confiança no valor do papel-moeda, seu valor diminui, e esta diminuição quebra ainda mais a confiança, num ciclo vicioso.
7) Aos poucos, com a crescente digitalização da economia, o papel moeda físico vai sumindo e vai dando lugar a transações com cartões de crédito e débito, transferências bancárias totalmente eletrônicas, e etc. O PIX facilitou ainda mais o processo. Isto foi mais uma camada de abstração alcançada: não é nem mesmo em um pedaço de papel - o tempo de vida e o esforço das pessoas está sendo armazenado em baterias totalmente virtuais: lançamentos contábeis eletrônicos em sistemas digitais de bancos.
Se criptomoedas vingarem como meio de troca (não sei e ninguém sabe se isso vai acontecer), então acho que isto representaria mais uma camada de abstração: armazenar tempo de vida em baterias virtuais geradas por algoritmos, sendo que alguns "garantem" uma escassez artificial (limite ao número de unidades mineráveis, como o BTC, BCH, etc.) e outras não (ETH). Claro que para isto funcionar, um número suficiente de pessoas precisa aceitar que isto funciona, senão as criptos continuarão sendo apenas bilhetes de loteria e objetos de especulação.
Notemos que, apesar de a humanidade estar entrando em camadas de abstração cada vez mais etéreas e profundas acerca do que é dinheiro, o escambo não desapareceu completamente (e nem acredito que desaparecerá), e nem as moedas de ouro (também acredito que não irão desaparecer).
No meu resumo acima, eu foquei no que é explicitamente dinheiro e deixei de lado outras abstrações que também funcionam como dinheiro (o mercado de crédito e o de derivativos, que são mais antigos do que muitos imaginam), para evitar que o texto ficasse longo demais. Talvez eu escreva mais sobre estes outros mecanismos em futuros posts.
A lição central aqui é: o dinheiro, mesmo o ouro, só funciona porque um número suficiente de pessoas concorda que funciona. A vantagem do ouro é que ele é usado há milênios pela humanidade, mas no fundo ele precisa ser aceito por um número suficiente de pessoas para funcionar. Como é usado há milênios, ele tende a ser sempre aceito, mas pode haver cenários em que talvez não seja.
Eu acho que, se não existisse o artifício do dinheiro (armazenar tempo):
- ou a principal ocupação da maioria das pessoas seria a de suprir o básico (alimento e água) com as próprias mãos para si mesmo e suas famílias (tal como era no estado natural do homem) - no regime feudal era assim... os camponeses geralmente passavam a vida inteira sem ver dinheiro, só cuidando da terra em troca de proteção do senhor feudal, ou pelo menos é o que nos diz o falecido historiador Jacques Legoff; ou
- haveria uma divisão de trabalho em troca de outra coisa que não seria dinheiro (honra, favores, reputação, ou algo assim).
O que acham disso, confrades?
Que outras reflexões poderíamos tirar a respeito das camadas de abstração do dinheiro?
Forte abraço!
Fiquem com Deus!
O dinheiro, as formas como são feitas as transações financeiras acompanharam o desenvolvimento da humanidade e as novas tecnologias
ResponderExcluirNão necessariamente de forma linear, mas, sim.
ExcluirExcelente resumo Mago!
ResponderExcluirPra quem não sabia de onde vem o ditado que tempo = dinheiro e vice e versa.
Abraços
Valeu, Bilionário! Gosto de estudar esse assunto (história econômica / história monetária) acho bem interessante.
ExcluirÉ isso aí, saber pescar é mais importante do que ter o peixe.
ResponderExcluiro antropólogo americano David Graeber apresenta em nova perspectiva a história da dívida e do crédito, bem como da origem do dinheiro. A análise abrangente de Graeber põe em xeque mitos dos estudos econômicos, como o de que o dinheiro teria sido inventado para substituir o escambo. O antropólogo demonstra que, antes mesmo da criação da moeda, existiram civilizações que lidaram com elaborados sistemas de endividamento e comércio.
ResponderExcluirhttp://fabianodalto.weebly.com/uploads/3/6/8/2/3682836/graeber_2016_.pdf
ExcluirInteressante, depois vou ler. E acho que "sistemas de endividamento" sempre existiram - nem que fossem, digamos, dívidas de honra, dívidas de favores, e por aí vai.
ExcluirExcelente Post! Me lembrei da época que eu era pequeno e falava que o problema de pobreza do Brasil era de fácil solução, bastava imprimir dinheiro para todo mundo! Sempre bom entender que no fundo o papel moeda só tem valor porque todos confiamos que ele terá valor.
ResponderExcluirValeu, concurseiro. Acho que toda criança pensa nessa "solução" de imprimir dinheiro! Pena que na vida real os políticos e banqueiros aplicam ela, e nem por inocência infantil, mas por maldade mesmo...
ExcluirMuito curiosa a história do dinheiro.
ResponderExcluirSe eu fosse um homem das cavernas eu não aceitaria ouro, acho tão inútil.
De qualquer forma é interessante notarmos como saímos de um ambiente de escassez para um ambiente em que bancos centrais simplesmente imprimem metade de todo o dinheiro já feito no mundo em uma questão de apenas alguns semestres e ainda mais interessante é que toda a injeção de liquidez é sempre absolvida pela mesma parcela do mercado.
Abraços,
Pi
Valeu, PI. Sim, essa impressão descontrolada de moeda está sendo sem precedentes, acho eu. Maldade pura dos políticos e também dos banqueiros e empresários mancomunados com os governos...como sempre, quem se ferra é a classe média e os pobres...
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