domingo, 16 de agosto de 2020

Sobre a blackpill da inteligência artificial


A humanidade, desde que o mundo é mundo, parece ter uma propensão a imaginar cenários pessimistas e de grande desolação. Talvez seja um dos sintomas do Paraíso perdido.

Deve ter sido assim na época da peste negra na Europa: muita gente deve ter imaginado que o mundo ia acabar e que todos morreriam doentes. Na época da gripe espanhola deve ter sido a mesma coisa. Acredito também que na época do nazismo, muitos tenham imaginado que o 3º reich se tratava literalmente do exército do anticristo marchando sobre a Terra, e que hitler conquistaria o mundo, trazendo assim os últimos dias. Na época da Guerra Fria (que aliás, não acabou), o grande medo que assolava os corações de muita gente era o da guerra nuclear, quando EUA e URSS disparariam seus mísseis e mergulhariam o mundo em um inferno radioativo (os mísseis teoricamente ainda existem, mas as pessoas pararam de se preocupar tanto com eles, e arranjaram outras fontes de preocupação, como o aquecimento global, agora chamado de climate change). Atualmente, com a rapidez e acessibilidade das informações, a imaginação do ser humano corre mais solta do que nunca, e acabou agravando essa questão dos cenários pessimistas. Já há alguns anos, foi cunhado na internet o termo "blackpill", o qual é derivado da "redpill" cuja origem é o filme Matrix. A redpill é uma metáfora para uma informação que, assim que passamos a conhecer, nos liberta de alguma forma, nem que seja "apenas" nos libertar de uma mentira. A sua derivada "blackpill", por outro lado, é uma informação que nos deixa deprimidos e pessimistas tão logo passamos a conhecê-la. Muitas "redpills" divulgadas são na verdade blackpills disfarçadas.
Atualmente uma blackpill que é amplamente divulgada é a respeito da inteligência artificial (IA).

Praticamente tudo o que se escreve a respeito de IA tem um tom depressivo no fundo, porque a maioria dos artigos fala a respeito de como muitos empregos vão acabar porque haverá "robôs" e sistemas inteligentes que substituirão seres humanos, e quase todos os artigos falam da necessidade de as pessoas se atualizarem para se manterem empregáveis - o problema é que nesses artigos isso soa como um contra-senso, pois pelo tom do próprio artigo "tudo será automatizado", então meio que não há para onde correr, e alguns dos trabalhos mais fáceis de serem automatizados são justamente os da área de TI. 

Grosso modo, uma IA é como um modelo matemático que se retroalimenta de dados coletados na vida real para se aperfeiçoar continuamente. A ideia em si da IA já é bem antiga, mas só recentemente é que ela se tornou possível de ser implementada por causa da melhora nas tecnologias de armazenamento: é necessário um imenso volume de dados para treinar e para operar uma IA, e era inviável reunir tantos dados assim nos tempos do disquete e mesmo depois nos tempos dos pendrives de 300mb que custavam cinquenta reais e as taxas de transmissão e processamento eram frações do que existe hoje. 

Outra maneira de explicar: uma IA é como um modelo econométrico em que os coeficientes angulares das variáveis explicativas (os "betas") são continuamente ajustados para se encaixarem cada vez melhor aos resultados observados na realidade. Como a realidade é moldada em parte por seres humanos (e seres humanos são em muitos aspectos imprevisíveis) e em uma parte muito maior pelo restante da natureza (cujas leis ainda estamos longe de realmente compreender), nunca haverá um sistema que explique perfeitamente a realidade de qualquer coisa. Além disso, a realidade não é 100% lógica: há diversas situações (inclusive em finanças) em que a decisão mais racional não necessariamente será matematicamente perfeita, e pode até mesmo ser desvantajosa do ponto de vista matemático, mas possui um motivo mais profundo, na área emocional, que a justifica. É o que faz uma pessoa vender ações com prejuízo porque precisa do dinheiro, ou comprar uma casa assumindo uma dívida de 30 anos mesmo que fosse mais barato pagar aluguel, por exemplo.

Muitos textos que circulam na internet descrevem um mundo bastante apocalíptico em que 99% das pessoas ficaram desempregadas por causa da IA e se tornaram mendigos, enquanto  1% se divide entre os donos de IAs e os poucos empregados remanescentes, ultra especializados (mas já destinados a se tornarem obsoletos, segundo as regras deste mundo hipotético). Pouco depois, só sobrariam os donos de IAs e uma multidão de mendigos como se jamais viu. Assumindo que tudo isso seja verdade, o que poderia acontecer nesse mundo?

- Será que dentre esses bilhões de mendigos ninguém tem nenhuma posse, nenhum patrimônio? Todo mundo que era dono de um imóvel,  por exemplo, vendeu a casa para aumentar seu tempo de sobrevida? Donos de carros venderam seus carros também? Para quem? Será que os donos de IAs seriam os donos de todos os bens do mundo?

- Se quase todo mundo está desempregado, então as empresas (que são operadas por IAs) vendem seus produtos e serviços para quem? De onde essa massa de mendigos tira dinheiro? De onde vem o lucro das empresas? Dinheiro faria sentido em um sistema em que a vasta maioria das pessoas está excluída dele?

- Será que os mendigos viveriam de uma "renda mínima universal"? Se for, então no fundo são todos empregados dos donos da IA (os únicos que produzem riqueza), e o "emprego" deles consiste em ser mendigo e girar o dinheiro dessa renda mínima. Se for possível economizar alguma parte do dinheiro desta renda, comprar ações das empresas, etc., então eventualmente os mendigos se tornariam proprietários também. Se não for possível este tipo de melhora, então eventualmente essa ordem seria rompida, caso a vida destes mendigos seja muito ruim. Além disso, provavelmente os mendigos formariam uma sociedade paralela para sobreviver. (Na verdade, durante uma boa parte da idade média (pelo menos na Europa), a grande maioria dos camponeses e servos nem lidava com dinheiro e a riqueza na época era representada principalmente por terras e não por moedas. Até mesmo os nobres não usavam muito o dinheiro. Por um bom tempo moedas foram coisas relativamente raras, e os camponeses mal tinham acesso aos "centavos" da época e nem precisavam. As pessoas comuns trabalhavam pela subsistência, e impostos eram cobrados em víveres - futuramente escreverei sobre isso)

- Note que se houver uma renda mínima universal,  ela só pode vir através de impostos ou de contribuições voluntárias, e como somente os donos das empresas operadas por IAs estariam produzindo, estes valores viriam deles. De um jeito ou de outro, ela não faria muito sentido em um mundo como o descrito, pois o dinheiro sairia de um lugar para voltar para o mesmo lugar, grosso modo.

- Aquele cara esquisito que escreveu os livros "sapiens"e "homo deus" descreve que o dinheiro ainda faria sentido em um mundo como esse porque as empresas operadas por IAs fariam transações entre si, mas para mim não faz sentido haver dinheiro porque, também segundo o autor, as "pessoas comuns" não teriam acesso a ele. O que ele descreveu, na verdade, seria um sistema contábil onde as empresas registraram que produtos e serviços estão devendo umas às outras e traduzindo isso na forma de números, e não dinheiro, o qual seria irrelevante. Haveria na verdade um "escambo automatizado" entre as empresas operadas por IAs. Se houvesse dinheiro e este ainda fosse relevante e as pessoas comuns neste cenário apocalíptico não tivessem acesso a tal dinheiro por serem "inempregáveis" da maneira como o autor definiu, então muito provavelmente surgiria uma sociedade paralela com moedas próprias ou simplesmente escambo. (Além disso, o próprio autor destes livros não é uma pessoa 100% confiável e intelectualmente honesta, porque em seus escritos reduziu a experiência humana apenas aos aspectos econômicos e faz algumas comparações esdrúxulas para justificar seus pontos de vista) 

- Mesmo em um mundo onde você se tornou "inempregável", se você tem um imóvel você pode alugá-lo, morar em um lugar com aluguel mais barato e embolsar a diferença. O mesmo vale se você for dono de um carro, de um barco, de qualquer bem com utilidade econômica que possa ser alugado para um terceiro. A renda de um proprietário não estaria ameaçada por IAs. Esse é uma coisa (ser proprietário de algo) em que é indiferente ser humano ou ser IA. 

- a maior parte das "IA" hoje em dia são meros geradores de lero lero melhorados. Muitas são chatbots que dão a resposta estatisticamente mais provável que um ser humano esperaria para determinada pergunta (e se um número suficiente de pessoas resolver sabotar uma IA, inventando respostas absurdas, ela pode passar com o tempo a dar as respostas erradas - foi o que aconteceu com uma IA da Microsoft) - não existe e nunca existirá um sistema infalível. Se atualmente há pessoas que se dedicam horas por dia para descobrir glitches em jogos para melhorarem seus tempos em speed runs, não acho difícil que surjam pessoas dedicadas a encontrar e explorar falhas em sistemas operados por IAs com os mais diversos propósitos.

- outro papo que costuma ser levantado por muitos deslumbrados é o de que eventualmente as IAs reescreverão seus próprios códigos e com isso suas performances "iriam decolar". Acho que isso não rola. Primeiro que uma IA não conseguiria se reescrever sozinha, ela precisaria de outra IA que lhe fosse superior para fazer isso por ela. Além disso, há um limite para a capacidade de melhora em reescrever um código. A primeira reescrita poderia até dar uma grande melhorada mas a partir daí as próximas melhorias seriam mais incrementais. E no fim o software será sempre limitado pelo hardware e pelas próprias leis da física.

-  Máquinas escrevendo códigos também não é novo: já existem há uns 30-40 anos programas que "escrevem sozinhos" as partes mais básicas de algoritmos, o que na verdade economiza o tempo dos programadores e nem de longe acabou com o emprego deles. 

- Num cenário em que não há mão de obra humana e absolutamente tudo é produzido por máquinas, então o preço de quase todas as mercadorias e serviços tenderia a zero. Não seria zero porque os recursos continuariam escassos então ainda persistiria a necessidade de um mecanismo de preços para equilibrar oferta e demanda, mas sem o custo de mão de obra em todas as atividades econômicas, tudo seria muito barato. Isso considerando, é óbvio, um cenário em que existe concorrência entre empresas.

- As consequências possíveis da automatização não são somente o desemprego: estando as pessoas desocupadas de funções que foram automatizadas /mecanizadas, podem muito bem surgir novas necessidades humanas (que são infinitas) para atividades que nem existem ainda, e aí serão aproveitadas as pessoas que foram substituídas por máquinas. Numa época em que toda a produção agrícola dependia de muita mão de obra humana, as pessoas não tinham nem tempo para pensar em outras coisas que não fossem a lavoura, o estoque para o inverno e as pragas. Não havia nem gente suficiente para tornar viáveis outros serviços possíveis. Tendo sido liberadas do campo pela mecanização da agricultura e pelo consequente aumento da eficiência de sua produção, muitas ocupações antes inimagináveis foram inventadas (por exemplo, era impensável alguém ser escritor em tempo integral, ou cuidador de idosos, ou revisor de textos, ou operador de trator, ou mecânico de tratores, ou vendedor de combustível para tratores, ou frentista de posto, ou planejador de supply chain, etc. etc.) . Porque o mesmo não ocorreria com as automatizações de hoje em dia?

- Por fim, a verdadeira inteligência vem da alma, e não do cérebro. O cérebro é um emissor e receptor, e não a fonte da inteligência. E a humanidade não é capaz de criar almas. 

Fiquem com Deus!