sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O dinheiro na idade média

 Saudações,  confrades 

        Hoje vou escrever bem resumidamente sobre o uso do dinheiro na idade média, conforme descrito pelo historiador Jacques Le Goff, autor de A Idade Média e o Dinheiro (além de vários outros livros sobre a idade média - para quem gosta do assunto, recomendo!), livro que serviu de base para este post. Resolvi escrever este artigo a título de curiosidade, porque gosto do assunto (sou colecionador de moedas e aprecio a arte numismática), e também  porque pode servir para enriquecer um pouco a cultura de meus leitores.

   



    Como é um assunto longo e detalhado, ao invés de escrever o post na forma de um texto como normalmente faço, vou colocá-lo na forma de vários tópicos dos assuntos que julguei mais interessantes do livro:

- Durante boa parte da idade média, a riqueza era representada principalmente por terras. Demorou um pouco até que o uso de moedas ressurgisse (com a queda do império romano, as moedas  "sumiram" por causa do relativo caos social da época, e por algum tempo após seu "ressurgimento", as pessoas ainda usavam algumas das moedas romanas que haviam sobrado, porque os conhecimentos acerca de cunhagem de moedas não foram aprendidos pela vasta maioria das tribos bárbaras que destruíram o império romano). 

- Como a vida era fortemente rural, muitos camponeses podiam passar a vida inteira praticamente sem nem ver moedas, porque viviam pela lavoura, e até os impostos aos senhores feudais eram pagos em víveres. Uma pequena parte que era paga em dinheiro, e mesmo assim não era em todo lugar que isso ocorria.

- Naquela época as moedas eram usadas principalmente pelos comerciantes (por conta da necessidade de transportar riqueza de maneira portátil e cômoda - o escambo é inviável para o comércio em médias e  grandes distâncias) e pelos nobres (mas, como eu disse antes, a riqueza vinha principalmente da posse de terras, e também de imóveis). 

- O uso do dinheiro foi sendo impulsionado por causa do aumento das populações das cidades, porque nelas seria inconveniente pagar as despesas em víveres, tendo em vista que não havia espaço para todos plantarem.  Assim, os habitantes das cidades adquiriam comida, bens e serviços em troca de dinheiro assim como é hoje. Estima-se que cerca de 60 a 70% dos rendimentos dos habitantes da camada mais pobre das cidades eram gastos para comprar comida (principalmente grãos). Outro motivo para o aumento do uso do dinheiro foi o ressurgimento do comércio.

- a oferta monetária era bastante dependente do comércio, principalmente do comércio exterior - como o dinheiro era 100% físico e lastreado em metal precioso (moedas de ouro e de prata), quanto mais exportações para outros países, mais moedas entrariam na economia local. Essa lógica também valia para o comércio interno, de modo que a oferta monetária poderia ser bastante diferente entre duas cidades do mesmo reino, e creio que sua localização influenciava bastante nessa questão (cidades próximas ao mar ou a outros tipos de acesso a rotas comerciais tenderiam a ser mais ricas, por exemplo, porque teriam um comércio bem mais forte)



- além da oferta monetária, o crescimento do comércio também provocava aumento da demanda por moedas. Como o processo de fabricação de moedas era bem mais demorado que hoje em dia (cada moeda era cunhada individualmente, martelando-se uma chapa do metal que formaria a moeda entre 2 "carimbos", um para o verso e outro para o anverso da moeda, e havia vários trabalhadores envolvidos na produção: o moedeiro em si, o cortador de chapas, o cara que fazia as chapas, o fiscal da qualidade das peças produzidas, etc.),  também surgiu a necessidade de moedas de maior valor  (moedas de ouro ou de prata maiores, com mais metal, etc.) para que fosse conveniente carregar quantias maiores de riqueza na estrada e também para comprar bens mais caros (terras, casas, jóias) com menos moedas, para ser mais prático.

Era assim que as moedas eram feitas, uma por uma, marteladas entre 2 carimbos de bronze ou ferro e posteriormente de aço. Não existia uma "padronização"  das moedas da forma como entendemos hoje, então havia uma margem bem ampla de erros  tolerados na fabricação de moedas. É por isso que as moedas medievais que ainda existem são tão diferentes uma da outra, mesmo sendo do mesmo país e da mesma época. Esse processo de fabricação só era possível porque ouro, prata e cobre são metais bem macios.

- Como uma coisa puxa a outra, o aumento do uso do dinheiro fez surgir uma necessidade também crescente por moedas de baixo valor, que eram chamadas de "moedas de esmola", "meios- denários", "óbolos" (lembram da parábola d'O óbolo da viúva?) ou "moedas negras" (como eram feitas de cobre, logo ficavam escuras - o cobre oxida em contato com o ar atmosférico) e eram usadas para as pequenas despesas do dia-a-dia (o autor do livro menciona que uma moeda de cobre era o preço de 1 pão em muitas cidades na época) e também para literalmente dar esmolas (o rei São Luís, da França, foi um célebre distribuidor de parisis - o "denário da esmola")


um exemplar da moeda "Parisis" - o denário da esmola


- as moedas recebiam o selo da autoridade local. O selo era uma prova de que a moeda era verdadeira e que seu teor de metal precioso era o definido em lei, e por isso uma moeda teria um valor intrínseco superior ao valor do metal precioso nela contido (até porque a oficina moedeira tinha que ter lucro, e no caso do rei era daí que vinha a "senhoriagem", que era a diferença entre o valor de face da moeda e o valor do metal nela contido - esta diferença é até hoje uma das fontes de receita pública)

- Nem sempre o rei tinha o monopólio da emissão de moedas - às vezes essa autorização era vendida para oficinas particulares, ou era delegada a nobres, de modo que cada condado/ducado/feudo/cantão poderia ter sua própria moeda em algumas nações europeias - isso por um lado dificultava um pouco o comércio entre nações, por conta da variação cambial (provavelmente o câmbio devia ser 100% baseado no peso das moedas, mas o teor de metal precioso devia variar bastante entre as moedas de cada local, de modo que podia haver distorções caso o comerciante não conhecesse o da moeda que estivesse avaliando na hora. - talvez houvesse moedas que não eram bem aceitas em determinados locais, por exemplo)

- além das moedas, também eram usados como forma de pagamento  lingotes de metais preciosos (principalmente de prata).  Tais lingotes também recebiam selos de autoridades que atestavam seu teor de pureza. 

- Obviamente, falsificações já existiam, e além das moedas falsas, as pessoas encontravam outros jeitinhos de burlar a lei: cortavam ou limavam as bordas das moedas para ir juntando os pedaços e eventualmente derrete-los e usar o metal para fabricar outras moedas ou lingotes; ou juntar todas as moedas em um saquinho e ficar agitando o saco para que o atrito entre uma moeda e outra funcionasse como uma lima, acumulando o pozinho de ouro ou prata no fundo do saco até que valesse a pena derreter o pó acumulado e transformá-lo em um lingote ou em outra moeda. Essas malandragens explicam ao menos em parte o porquê da maioria  das moedas medievais  que sobreviveram até os dias de hoje estarem tão danificadas. Aliás, é por causa deste golpe de limar ou cortar as bordas das moedas que até hoje elas têm bordas serrilhadas ou com alguma marca, mesmo que não sejam mais de ouro ou prata.


A  título de curiosidade, a última moeda de prata que circulou no Brasil foi a de 5.000 réis, de 1936, que tinha o rosto de Santos Dumont no verso e uma asa aberta no anverso. Ou seja, historicamente falando, não faz tanto tempo assim que deixamos de usar moedas de verdade - moedas de metais preciosos.



E vocês, caros leitores, o que acham do assunto? Gostam de Numismática? Gostam de História? Eu gosto de estudar estes detalhes da vida cotidiana da humanidade de outros tempos. Ajuda a entender algumas coisas de hoje em dia, além de nos dar perspectiva do longo caminho percorrido para chegarmos até aqui. 

Se souberem de alguma outra curiosidade sobre o dinheiro na idade média, comentem aí! 

Forte abraço, fiquem com Deus!

6 comentários:

  1. História fantástica!

    É muito interessante o funcionamento da economia na idade média, lembro de ter lido alguma coisa sobre os bancos surgirem com as Cruzadas, onde se não me engano era depositado bens e moedas em um banco na Europa e se concedia um certificado que permitia a retirada do valor dos bens na Ásia Menor e na Palestina.

    Abraços,
    Pi.

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    1. Valeu pelo comentário, PI. A origem das cédulas é essa mesmo que você escreveu: originalmente eram certificados de depósitos de determinada quantia em ouro ou prata, e seu uso se multiplicou pela conveniência - era mais seguro e prático andar com pedaços de papel do que com moedas de ouro, por exemplo.

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  2. ótimo texto
    gosto bastante de História
    a idade média tb marca do surgimento dos títulos de crédito

    abs!

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    1. Obrigado Scant. Estudando o passado entendemos o presente e podemos evitar problemas no futuro.

      Abraço

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  3. Isso me lembrou sobre o assunto das criptomoedas e como evoluíram os meios de troca.
    Salvo eu esteja falando alguma besteira, os reais brasileiros que usamos são lastreados na competência dos burocratas de Brasília. Então, é arriscado confiar na poupança em reais brasileiros para poder comprar alguma coisa daqui a alguns anos.
    Será que as criptomoedas serão o meio de troca de bens e serviços no futuro? O pessoal de renda mais alta já usa muito pouco o dinheiro físico, então os reais na conta corrente são dígitos eletrônicos. Será que os governos irão lançar suas próprias criptomoedas para controlarem melhor o dinheiro? Essa coisa do pix, será que é um passo em direção ao criptoreal? Dúvido que o pix foi lançado com a intenção de beneficiar o cidadão. Governo não serve pra isso, tudo o que os burocratas querem é maior controle e poder.

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    1. Obrigado pelo comentário, AC. O Real (e praticamente todas, se não todas, as moedas do mundo) é uma moeda sem lastro, ou seja, é uma moeda fiduciária : depende da fé pública, o valor dela existe enquanto o povo acreditar nela. Veja que os argentinos já tem um histórico de não confiar no Peso, há muito tempo eles já são craques em comprar dólar no mercado paralelo - é isso o que acontece quando um povo perde a confiança em sua moeda.
      Também não vejo o pix com bons olhos, vejo como mais um passinho para a escravidão financeira do povo. Infelizmente nem eu nem você temos como impedir isso. Podemos apenas nos precaver: fazer reserva de outras moedas, abrir conta no exterior, fazer reserva em ouro e prata, comprar criptomoedas, etc. Tomara que bitcoin é as demais criptomoedas resistam, porque deve ser fácil para os burocratas globalistas criminalizarem seu uso, empurrando todos nós para o submundo do "crime"... caso essas bizarrices aconteçam, o mercado negro sempre estará aí para ajudar, e talvez até mesmo o escambo resolva sair da aposentadoria para nós ajudar.
      Mas tenhamos Fé em Deus e rezemos por dias melhores. Os velhos broxas globalistas estão, sem saber, abrindo o caminho para o reino de Deus no mundo.

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